sábado, 18 de setembro de 2010

Quadros da transmontaneidade (20)

O banho

Este quadro de uma transmontaneidade já passada, mas que existiu, e que, tal como todas as outros, moldou a nossa identidade, podia, perfeitamente, começar assim: “No tempo em que poucos tinham casa de banho…” Mas não, vou iniciar pelo outro lado, o lado das pessoas.
A tia Maria das Dores era o homem da casa. Nada lhe metia medo, o seu aspecto franzino não condizia, em nada, com o trabalho que todos os dias executava. Desde o alvor do dia até à noitinha, era uma labuta constante. Além do amanho da casa, ela lavrava, ela semeava, ela cavava a vinha, o toro das amendoeiras onde a charrua não podia chegar, fazia tudo. Nunca se lhe conheceram grandes andrajos. A figura era sempre a mesma, um lenço preto que usava de Verão e de inverno atado na coroa da cabeça, uma saia preta, rodada, e depois uma blusa também preta com umas flores brancas muito miudinhas. Era a vestimenta de todos os dias, quer fosse Verão ou Inverno, feriado ou dia santo de guarda.
O homem, o Ti Alberto, menos desembaraçado, andava sempre atrás dela, como se ela fosse o motor de toda aquela labuta. Ele era tão trabalhador ou mais que ela, mas aquela sua indolência levava-o a andar sempre na retaguarda da Maria das Dores, em todos os aspectos, entenda-se.
O único dia de descanso daquelas duas almas era o dia da festa. Nesse dia não havia horta, nem vinha que os arrancasse de casa. O dia gastava-se entre o ver passar a banda na arruada da manhã, o cozer as batatas com algum conluio mais avultado, e como não podia deixar de ser, tomar banho na velha bacia de folha, que só tinha essa serventia.
Nesse dia de festa, a Tia Maria das Dores, depois de apajear o marido, como gostava de dizer, depois de lhe aquecer a água na caldeira de escaldar as nabiças, não fosse ele constipar-se, depois de lhe colocar a bacia a jeito e a fatiota domingueira em cima da cama, foi dar duas de conversa com as vizinhas que, à sombra das casas fronteiras, se regalavam com uma brisa refrescante que se levantou de repente.
Já lá ia uma boa hora, e o raio do homem não aparecia à porta a mostrar o fato que tinham mandado fazer ao alfaiate, há um bom par de anos. O tempo transcorrido era tanto que já o caso começava a preocupar a Tia Maria das Dores.
“Será que lhe deu alguma congestão?”, pensava, “será que que se deixou afogar no raio do alguidar?”, e assomava-se-lhe um sorriso trocista nos lábios, curtidos pelo Sol e pelo vento.
Estava ela nesta cogitações quando o ti Alberto dá sinal de vida. Vem à janela, tronco nu, e pergunta muito sério como se tivesse de resolver o maior problema de toda a sua vida:
- Ó Maria, por onde é que começo?
A mulher que de imediato percebeu tudo, que de repente o imaginou durante uma hora, ou mais, ora a temperar a água, ora a colocar o pé direito, ora a molhar o pé esquerdo sem conseguir decidir qual a parte do corpo a lavar primeiro, respondeu-lhe muito arreliada:
- Pela ponta da gaita, c…

ANTÓNIO SÁ GUÉ

4 comentários:

vasdoal disse...

Mais uma preciosidade!

Abraço,
João Costa

Anónimo disse...

Mais uma preciosidade, mas com a agravante de ser a epígrafe da MULHER (transmontana).

Obrigada!

Um abraço,

Isabel

Anónimo disse...

Ah mulher do catano! Parece que o ti Alberto era um tanto atadinho, como aqui se diz, ou um "granda morcon", diriam os tripeiros...
Só o António pra nos contar destas!
abraço.

Anónimo disse...

O Sá Gué tem o talento de transformar episódios do quotidiano em acontecimentos que retratam de forma exemplar a alma e o viver de uma geração, de um povo.
Felicitações renovadas.

Este episódio traz-me à lembrança um episódio semelhante, relatado pelos mais idosos:
O médico questiona a doente de meia idade sobre os hábitos de higiene. Esta, sem perceber a pergunta, fica em silêncio. O clínico refaz a pergunta:
- Banho, mulher, quando toma banho?
- A cada meio ano senhor doutor, responde ela prontamente.
E após um silêncio breve, ela acrescenta, em tom determinado, para esclarecer qualquer dúvida:
- Quer precise, quer não precise, senhor doutor...

A. Manuel